Vamos ler a dois?
Há alguns anos, tive a oportunidade de abordar os benefícios da leitura, num capítulo do meu livro Educar Olhando em Frente (2018). O capítulo intitula-se “Ajudar o cérebro a dar o seu melhor”, e a abordagem centrada nos benefícios da leitura é precedida de outros temas que explicam os princípios da estimulação e reabilitação das funções cerebrais e os contributos para a melhoria das funções cognitivas e prevenção do declínio das capacidades intelectuais.
Este enquadramento serviu de base para que melhor se entendessem os benefícios da leitura. E, no que a estes benefícios diz respeito, destaquei que, entendida como meio de estimulação cerebral, a leitura contribui para reforçar a nossa atividade cerebral, melhorando as estruturas que utiliza no seu processamento. Dando ênfase a que, na infância, se encontram em aberto maiores possibilidades de enriquecimento de capacidades através da atividade leitora, mas também a idade adulta permite o seu contributo para a manutenção de bons níveis de atividade cerebral, lembrei que tal acontece, não apenas através do enriquecimento no plano cognitivo, mas também pela dimensão emocional que se lhe encontra associada.
Na ocasião, sem entrar em análise detalhada sobre as diferenças entre a leitura em papel e a leitura habitualmente usada no âmbito da utilização das tecnologias de informação e comunicação, apontei que a leitura em papel, na sua globalidade, permite uma atitude mais reflexiva do que a leitura proporcionada pelas segundas. Como destaquei, em geral, o que acontece é que as tecnologias de informação nos apresentam um formato de leitura rápida e precisa, sem dúvida de grande utilidade para a eficácia de determinado tipo de tarefas, mas que retira, na sua essência, o modo de concentração e acompanhamento do enredo, usualmente proporcionado pela leitura de um livro. Por exemplo, na possibilidade de envolvimento nas descrições encontradas no decurso da leitura de um romance, cada vez também mais usada em formato digital, mas que, para muitos, ainda é, exclusivamente, associada à leitura em papel.
E, sem nenhuma ideia de pretensão de uma a favor de outra, tendo em conta que ambas cumprem funções específicas de grande importância, conclui, tal como defendido por Portellano Perez, que os dois formatos podem ser vistos como representando um contributo conjunto para a estimulação intelectual e a prevenção da deterioração das nossas funções cognitivas.
De seguida, concentrei-me em referir os contributos específicos da leitura para a manutenção de bons níveis de atividade cerebral, enquanto função cognitiva e emocional. Começando pelos fatores emocionais, destaquei o seu efeito na promoção da capacidade de compreensão dos outros, com implicações positivas nas relações estabelecidas, a melhoria do estado de humor e satisfação pessoal, e a potencial ajuda na higiene do sono, se esta atividade for associada à hora de dormir.
No que se relaciona com a melhoria das funções cognitivas, destaquei o seu contributo para uma boa reserva cognitiva, que constitui uma espécie de reserva que poderá ajudar a diminuir o impacto de possíveis processos de degeneração cerebral; um bom desempenho intelectual, sobretudo nas componentes ligadas à linguagem (pela estimulação, a título de exemplo, da capacidade para ordenar ideias e relacionar conceitos); a estimulação das capacidades de atenção, concentração e memória; o desenvolvimento da criatividade; a melhoria da capacidade de processamento rápido das tarefas; e a melhoria da capacidade percetiva e espacial, bem como das chamadas funções executivas do cérebro.
E, nesta sequência, quase inevitavelmente, destaquei a importância de se ler para as crianças, assunto que, pela sua especificidade, merecerá um desenvolvimento próprio, a abordar num próximo artigo, e, a seu propósito, apontei o igual proveito deste tipo de atividade se poder fazer entre adultos. Disse então que, de acordo com a minha experiência pessoal, pode ser muito útil e agradável fazê-lo igualmente com colegas de trabalho, em encontros regulares para falar de livros, em que cada um dos presentes tem a oportunidade de partilhar e refletir com os colegas sobre as suas experiências de leitura. Ou com o parceiro de vida e de partilha da aventura da parentalidade, sobretudo, se o livro for dirigido a pais e a educadores.
Mas hoje, quero destacar o meu interesse pela leitura a dois, enquanto processo de aproximação afetiva e emocional, com igual proveito intelectual, de partilha de ideias sobre temas lidos em conjunto mas, sobretudo, enquanto possibilidade “terapêutica” para o casal e para a sua relação amorosa.
É isso mesmo. Poderá a leitura conjunta, servindo um propósito de biblioterapia, tornar-se benéfica para a relação entre duas pessoas? Na verdade, eu recomendo-o vivamente nas minhas consultas de terapia de casal pois, enquanto neuropsicóloga e terapeuta de casal, eu acredito seriamente que sim.
E dou comigo a pensar. Há muitos anos, quando os nossos filhos eram, ainda, pequenos e a casa ficava em silêncio, a horas aceitáveis para as leituras da noite, eu e o meu marido descobrimos esta prática muito interessante e enriquecedora. A leitura a dois. Aconteceu pela primeira vez, de forma mais sistemática, espoletada pelo interesse comum na leitura de um mesmo livro, acabadinho de sair da editora. Um livro grandioso que esgotou, na minha perspetiva, muito rapidamente a sua primeira edição e, tanto quanto me é dado saber, nunca mais foi reeditado em Portugal. Trata-se do livro “Gosto de ti, mas…”, da conceituada terapeuta familiar e de casal, Ellen Wachtel, do qual, pelo seu elevado interesse, continuo a falar com grande entusiasmo e a recomendar, sobretudo nas consultas de terapia de casal.
E assim foi. Uma leitura partilhada, em que cada um, espontaneamente, de forma alternada, lia em voz alta para o outro, parando para conversar, ou refletir sobre algo relacionado com os assuntos da leitura, sempre que fosse considerado oportuno. E, sem termos uma intenção muito consciente acerca disso, esta inspiradora prática, durante vários anos, cá por casa, andou adormecida.
Mas, sendo sempre bom voltar ao que nos faz felizes, mais recentemente, com o voo dos filhotes a deixarem-nos de férias sozinhos, demos connosco, nos três últimos anos, a passar férias a dois. E a boa prática voltou!... No primeiro ano, tivemos o privilégio da inspiradora leitura do fantástico livro “Descansar: A razão pela qual conseguimos mais quando trabalhamos menos”, de Alex Soojung-Kim Pang, o autor do projeto Semana de 4 dias. E, curiosamente, no verão passado, quinze anos após a primeira leitura, demos connosco a reler o mesmo livro da Ellen Watchel, como se relêssemos as ideias da nossa madrinha das leituras em casal.
Já este ano, a leitura recaiu no clássico “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do autor considerado, ele próprio, um clássico da literatura dita motivacional, Dale Carnegie, de quem, confesso, desconhecia toda a vasta obra, que me foi recomendada pelo meu private english teacher. E, contrariamente às (minhas) expectativas, foi uma agradável surpresa! Fiquei, agora, com o desafio de ler os restantes livros em inglês… sem dúvida, um grande benefício, desta vez, para a melhoria da aprendizagem da língua inglesa.
Precisarei, ainda, de reafirmar que recomendo?
Maria do Sameiro Araújo - Psicóloga Especialista
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